quarta-feira, dezembro 25, 2013

Crónicas duma aspirante a...

A Luzia é uma gata preta. Apareceu-me no quintal faz daqui a pouco dois anos, cheia de carraças a que chamei carinhosamente piercings, e meio esquelética.

Não sei donde veio aquilo, que vida teve até ali… tentei dá-la para adopção, não sou uma pessoa de gatos mas de cães, pensei. Oferecia até o primeiro saco de ração. Chamava-lhe porta-chaves, por aquela coisa pequena me seguir para todo o lado e miar, miar… bom, às vezes dava um jeitão que o meu porta-chaves fizesse isso.
 Felizmente, ninguém a quis. Uma colega, porque ela era preta, e queria um gato assim para o beige.

Chamei-lhe Luzia para contrapor àquele escuro que carrega e por achar que ia ser uma luzinha na minha vida, aquela gata símbolo de azar. E é.
Sou daqueles humanos para quem os animais de estimação fazem parte da família. Por isso, ganhei uma parente, não sei bem de que grau, mas por analogia, uma filha.

Da figura anorética e carracenta despontou uma gata de pêlo longo e sedoso, mistura de rafeira e gata de pedigree real. Continua a miar, a miar, e começa de madrugada, quando ainda tenho muitos créditos de sono… já lhe disse que um dia a dou para adopção, mas só porque sei que ela não percebe ou não me liga nenhuma. Já não passo sem aquele pêlo sedoso aninhado ao meu lado no sofá ou esquivo pela casa. Não passaria, ainda que o pêlo fosse menos sedoso.

Os chineses comem gatos. Gatos e cães. Achamos nojento e bárbaro que comam os nossos amigos, os nossos parentes. Impensável. Mas nós comemos vacas, animais sagrados na Índia e do mais dócil e pachorrento que por aí há. E porcos, os que fisiologicamente mais se assemelham aos humanos e que quando criados junto a nós têm um comportamento idêntico em inteligência, emoção e, já agora, higiene, aos outros patudos, nossos amigos de mais longa data.

É cultural a escolha de quem matar e quem mimar, ou seja, não tem lógica, é irracional. 
Mas cultura? Cultura também são os talibãs que aniquilam mulheres e nós próprios, ocidentais, que durante muito tempo as menorizámos… cultura também foi a escravatura, o racismo, o nazismo… se eles são ou foram bárbaros e atrasados, o que somos nós, que decidimos que uns animais não podem sofrer e devem ser considerados e respeitados, e que outros são apenas objetos para consumo, a quem podemos infligir dor, sofrimento e morte?

Foi nisto que comecei a matutar… isto e uma altura em que passava frequentemente frente ao matadouro e os vi uma vez a descarregar animais. Vi o que seria um vitelo, branquinho, apavorado. E aquela imagem disparava-me a toda a hora.

E depois uma pintura duma artista polaca, com um homem numa quinta, com uma mão a acariciar um gato e com outra a segurar uma faca... os animais da quinta todos em fila, e o avental dele ensanguentado, a fazer adivinhar a matança. Matar não se compadece com cuidado em não magoar… sangra-se o porco e a galinha em agonia… esfolam-se e depenam-se vivos cordeiros, gansos, e num matadouro não se usa anestesia ou compaixão.

E sou chegada aqui. À constatação e consciência permanente de que somos uma sociedade cínica, que nada de coerente tem nesta matéria, baseada na barbárie e na crueldade, que aceitamos pacificamente porque está longe dos nossos olhos. Porque podemos comer vitelinhos e leitõezinhos, desde que não sejamos nós a matá-los nem assistamos à matança. Desde que isso esteja longe dos nossos olhos, dos nossos ouvidos.

Atingir um fim, desde que nos ocultem os meios.

Se virmos uma vaca a morrer afogada à beira da estrada vamos fazer tudo para a salvar, para evitar o seu sofrimento, a sua morte. Mas podemos logo de seguida mandá-la para o matadouro, e para tudo o que está convenientemente escondido atrás desses muros. O sangue, a dor, o olhar, a respiração, o som, a agonia… desde que ela apareça depois em partes incaracterísticas dentro duma covete na prateleira do supermercado. O resto não nos interessa.

 Como podemos ter consciência de todo esse sofrimento, ser no fundo cúmplices dessa barbárie de animais mais ou menos dóceis mas inocentes, e depois ir a correr dar colo aos nossos cães e gatos e evitar-lhe todo o sofrimento e dor? Não nos faz falta a coerência?

A mim faz. Continuo a comer canja, cozido à portuguesa, enchidos, que adoro… tenho pelo menos umas botas de pele e umas almofadas de penas, que ao que soube recentemente são retiradas com os animais vivos. Aqui pela casa de campo sempre conviveram os animais de estimação, os eleitos, com os de criação, os condenados. E vão conviver sempre.

Mas cada vez mais sinto o apelo da consciência, a necessidade de coerência das convicções com os actos... e a frustração de ainda não ter conseguido converter-me ou pelo menos aproximar-me mais do mundo desses tolos que são os vegetarianos, que eu tanto admiro e invejo.