Não sei donde veio aquilo, que vida teve até ali… tentei dá-la para adopção, não sou uma pessoa de gatos mas de cães, pensei. Oferecia até o primeiro saco de ração. Chamava-lhe porta-chaves, por aquela coisa pequena me seguir para todo o lado e miar, miar… bom, às vezes dava um jeitão que o meu porta-chaves fizesse isso.
Chamei-lhe Luzia para contrapor àquele escuro que carrega e por achar que ia ser uma luzinha na minha vida, aquela gata símbolo de azar. E é.
Sou daqueles humanos para quem os animais de estimação fazem parte da família. Por isso, ganhei uma parente, não sei bem de que grau, mas por analogia, uma filha.
Da figura anorética e carracenta despontou uma gata de pêlo
longo e sedoso, mistura de rafeira e gata de pedigree real. Continua a
miar, a miar, e começa de madrugada, quando ainda tenho muitos créditos de sono…
já lhe disse que um dia a dou para adopção, mas só porque sei que ela não percebe
ou não me liga nenhuma. Já não passo sem aquele pêlo sedoso aninhado ao meu
lado no sofá ou esquivo pela casa. Não passaria, ainda que o pêlo fosse menos
sedoso.
Os chineses comem gatos. Gatos e cães. Achamos nojento e bárbaro
que comam os nossos amigos, os nossos parentes. Impensável. Mas nós comemos
vacas, animais sagrados na Índia e do mais dócil e pachorrento que por aí há. E
porcos, os que fisiologicamente mais se assemelham aos humanos e que quando
criados junto a nós têm um comportamento idêntico em inteligência, emoção e, já
agora, higiene, aos outros patudos, nossos amigos de mais longa data.
Foi nisto que comecei a matutar… isto e uma altura em que
passava frequentemente frente ao matadouro e os vi uma vez a descarregar
animais. Vi o que seria um vitelo, branquinho, apavorado. E aquela imagem
disparava-me a toda a hora.
E depois uma pintura duma artista polaca, com um homem numa quinta, com uma mão a acariciar um gato e com outra a segurar uma faca... os animais da quinta todos em fila, e o avental dele ensanguentado, a fazer adivinhar a matança. Matar não se compadece com cuidado em não magoar… sangra-se
o porco e a galinha em agonia… esfolam-se e depenam-se vivos cordeiros, gansos, e num matadouro não se usa anestesia ou compaixão.
E sou chegada aqui. À constatação e consciência permanente de
que somos uma sociedade cínica, que nada de coerente tem nesta matéria, baseada
na barbárie e na crueldade, que aceitamos pacificamente porque está longe dos
nossos olhos. Porque podemos comer vitelinhos e leitõezinhos, desde que não
sejamos nós a matá-los nem assistamos à matança. Desde que isso esteja longe
dos nossos olhos, dos nossos ouvidos.
Atingir um fim, desde que nos ocultem os meios.
Se virmos uma vaca a morrer afogada à beira da estrada vamos
fazer tudo para a salvar, para evitar o seu sofrimento, a sua morte. Mas
podemos logo de seguida mandá-la para o matadouro, e para tudo o que está
convenientemente escondido atrás desses muros. O sangue, a dor, o olhar, a
respiração, o som, a agonia… desde que ela apareça depois em partes incaracterísticas
dentro duma covete na prateleira do supermercado. O resto não nos interessa.
A mim faz. Continuo a comer canja, cozido à portuguesa,
enchidos, que adoro… tenho pelo
menos umas botas de pele e umas almofadas de penas, que ao que soube recentemente são retiradas com os animais vivos. Aqui pela casa de campo sempre conviveram os animais
de estimação, os eleitos, com os de criação, os condenados. E vão conviver
sempre.
Mas cada vez mais sinto o apelo da consciência, a
necessidade de coerência das convicções com os actos... e a frustração de ainda
não ter conseguido converter-me ou pelo menos aproximar-me mais do mundo desses tolos que são
os vegetarianos, que eu tanto admiro e invejo.